Nota de REPÚDIO do Grupo de pesquisa Poiesis e Alquimia Feministas à condução do processo Mari Ferrer

Nota de REPÚDIO do Grupo de pesquisa Poiesis e Alquimia Feministas à condução do processo Mari Ferrer

 

Quantas vezes um homem, cansado após um dia de trabalho, precisou se sentar diante de uma tela em branco e dispor um pouco mais de sua energia e tempo para redigir uma nota de apoio a outro homem zdesconhecido, mas que precisava do seu apoio por ter sido humilhado pelo Estado em punição por ter tido o seu corpo sexualmente violado?

Quantas vezes esse mesmo homem hipotético, depois da segunda interrupção logo após ter iniciado sua tentativa frustrada de redigir a nota, se deu conta de que ainda lhe restava algumas horas de trabalho pela frente naquele dia, afinal, ainda tinha a janta para fazer, a roupa para recolher e os filhos para banhar antes de irem pra cama?

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Dentre tudo o que nos exaure quando somos mulheres em um mundo de homens, ainda precisar lutar por sobrevivência e dignidade talvez seja, de longe, o que mais nos fira e abata o espírito. Mas seguimos, exaustas, disputando o lugar ao sol que nos é reiteradamente dificultado. E seguiremos, machucadas, nos apoiando umas às outras e reafirmando as obviedades negadas, como o fato de que não, NÃO existe estupro culposo.

Curiosamente desde que houve o pronunciamento do Ministério Público de Santa Catarina em relação à absolvição de André de Camargo Aranha, para observar que o argumento "estupro culposo" não fora utilizado nas alegações do processo promovido pelos representantes de Mariana Ferrer, parece ter havido mais conforto para pessoas (em sua maioria homens) deslegitimarem o levante mulherio ocorrido nas redes sociais, no dia 04/11/2020, após divulgação do The Intercept. E o que é pior: minimizando, direta ou indiretamente, toda a revolta pela humilhação e assédio moral a que foi submetida Mari Ferrer em julgamento em que era vítima. Esse tratamento inaceitável passou a ser relativizado e invisibilizado em prol de termos técnicos e, para muitos, tudo não passou de mero exagero. Blefe. Grandiosa mentira. Pura histeria, disseram rindo alguns. Estratégia antiga sustentada na degradação sistemática se nossa figura e na deslegitimação de nossa voz e existência. Uma perversa atualização da antiga categorização de "loucas", na tentativa de minimizar o acontecido e naturalizar nossa objetificação, exploração e desvalor.

Em primeiro lugar, importa destacar que, em momento algum, o The Intercept afirmou que a expressão "estupro culposo", inexistente na legislação brasileira, constava nas alegações do processo. A propósito disso, a argumentação de que não houve dolo no ato sexual praticado por André de Camargo Aranha, uma vez que o homem não teria como identificar o estado de vulnerabilidade de Mari Ferrer, baseada no princípio in dubio pro reo, parece permitir a interpretação ASSOCIATIVA a partir do conceito de "homicídio culposo" (Artigo 121, §3º do Código Penal Brasileiro), justificando, portanto, o emprego crítico da expressão “estupro culposo” por parte do jornal. 

Fato é que a interpretação e veiculação da expressão nas mídias denuncia o que realmente se trata: na naturalização dos atos de violência e violação de direitos das mulheres que ocorrem de modo sistemático e estrutural em nosso país, cujas raízes são profundas. O estupro foi instituição fundacional da sociedade brasileira. E há mais de 500 anos, esse importante mecanismo de coerção tem manchado nosso território com nosso sangue, sendo amplamente utilizado para instaurar e perpetuar a estrutura de poder e exploração. E é isso que está em jogo: o caráter estrutural do estupro e o quanto ele atravessa as instituições de direito, corroendo as possibilidades de democracia efetiva.  

Somos muitas Mari Ferrer submetidas, cotidianamente, à coerção, ao medo, à violência e ao sofrimento. Somos muitas Mari Ferrer, pois, a cada 8 minutos, 1 pessoa sofre estupro em território nacional, segundo o Anuário de Segurança Pública. Somos muitas Mari Ferrer, pois a violência que ela passou não se resume à sua história biográfica. Ela reverbera hoje em angústia, medo e revolta em cada peito de mulheres cansadas, exauridas, em função desde a divisão desigual do trabalho até a exaustão de ver/sentir a repetição da ação nefasta dos vetores de opressão que nos ceifam direitos, vidas, saúde, potência e possibilidades existenciais. E, desta (outra) vez, com respaldo da justiça que não apenas reifica a violência como a fomenta, vulnerabilizando ainda mais cada mulher brasileira.

Espanta o modo como o Poder Judiciário (e algumas personalidades públicas, como é o caso de Gabriela Prioli) desviou o foco do debate — a saber, os caminhos argumentativos percorridos para o veredicto final negativo —, ao apontar o suposto problema técnico da expressão viralizada. É evidente que as redes sociais têm poder tsunâmico para bem e para mal, o que significa, em certa medida, a atualização da antiga brincadeira do telefone sem fio. Contudo, outro óbvio precisa ser dito: não se trata de uma brincadeira. Embora não seja possível prever e controlar os desdobramentos dos dizeres e movimentos e possíveis desvios de informação aconteçam, também não é possível aceitar que esse fato seja utilizado como estratégia de silenciamento do problema. Aproveitar-se desse inevitável para relativizar a importância e o direito de problematizar a base argumentativa que absolveu André de Camargo Aranha é um gesto típico da cultura misógina a que estamos submetidas. Nesse cenário, lembrar-nos de que tudo é uma questão de linguagem torna-se imprescindível. 

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Se observamos casos em que homens foram condenados por muito menos que Aranha, como, por exemplo, o de Luiz Alves de Lima, ex-cobrador de ônibus que foi acusado, pela justiça do Espírito Santo e pela lei moralista (da barbárie) do então senador Magno Malta, de pedofilia por estuprar a filha de dois anos em 2009, temos a prova de que a legislação brasileira permite brechas de maneira que uma sentença dependerá da pessoa encarregada de interpretá-la e de seus interesses de classe. Não são raros e nem poucos os casos em que o violador saiu impune. A justiça que deveria garantir leis e proteção funciona como uma espécie de "carta branca" para violação e atos de violência ao mesmo tempo que legitima a lógica patriarcal que oprime e mata todos os dias. 

É evidente e sabido: questões de classe/raça/gênero e seus intrínsecos jogos de poder e domínio são acionados durante processos criminais. Porém, basta surgir uma crítica que desmonte a cortina de fumaça em torno da suposta neutralidade da lei para surgirem especialistas em defesa da razão e das questões técnicas, como se tudo fosse simples aplicação técnica. Mulheres, mulheres, menos emoção, mais razão, dizem. Querem mais? 

Resta, agora, não permitir que o debate esmoreça até cair na profunda vala do esquecimento, como fazem com todos os assuntos de interesse das mulheres.  

Seguir e lutar passam a ser verbos necessários para garantir nossa existência. Ser mulher em uma sociedade misógina exige esforço alquímico de extrair força neste cenário para repudiar as injustiças que nos assolam. 

Assim, nós, pesquisadoras do grupo Poiesis e Alquimia, reiteramos nosso REPÚDIO à condução do processo que absolveu André de Camargo Aranha.

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